Os valores ea antopología: para uma leitura fenomenológica
José Henrique Silveira de Brito
Ramiro delio Borges de Meneses
INTRODUÇAO
O termo “Axiologia” tem origem em dois termos gregos: axios (aquilo que é precioso, digno de valor) e logos ( palavra, discurso,princípio ) significa, portanto, ciência do que é precioso/do que é digno. Em sentido lato, designa “Teoria ou reflexão sobre os valores”. Em sentido estrito, equivale a “Filosofia dos Valores”, ramo da filosofia que estuda sistematicamente e por si mesmo o mundo dos valores, quer privilegie ou não o “valor” relativamente ao “ser”. A Axiologia é, pois, uma teoria que pretende esclarecer, justificar e sistematizar filosoficamente o nosso saber sobre os valores tendo como ponto de partida a experiência humana dos valores.[1]
Em Totalité et Infini Lévinas afirma que viver no mundo é viver de… «Vivemos de “boa sopa”, de ar, de luz, de espectáculos, de trabalho, de ideias, de sono, etc.…».[2] O nosso primeiro contacto com o que nos rodeia acontece em termos de fruição porque o que nos aparece surge como algo que nos interessa, como algo que vale a pena, como algo que nos atraia ou que não desperta qualquer interesse, que causa repulsa ou detestamos, pelo que a experiência valorativa é anterior à do conhecimento. Como expusemos em De Atenas a Jerusalém. A subjectividade passiva em Lévinas, essa fruição, no entender de Lévinas, «não é apenas constituída e atingida na posse do objecto para a qual tende. O próprio tender para, a própria necessidade que desencadeia a tendência, é já constitutiva da fruição».[3] O mundo que nos rodeia aparece constituído por coisas para as quais tendemos porque valem a pena ou de coisas das quais nos afastamos porque nos causam desagrado. O mundo aparece-nos como algo com valor com o qual o sujeito se relaciona em termos de fruição. O ser humano é constituído por desejos e necessidades; o que surge como capaz de preencher os desejos ou de satisfazer as necessidades é um valor. A experiência axiológica é uma experiência constitutiva do ser humano.
O termo “valor” é polissémico pelo que devemos esclarecer a quais realidades nos queremos referir quando o utilizamos.[4] Quando pronunciamos o termo “valor” podemos estar a referir-nos a três realidades diferentes. Podemos estar a referir-nos à vivência de um valor; por exemplo quando nos referimos ao prazer que temos ao ouvir uma sinfonia de Beethoven, ao ver uma pintura de Rembrant, uma paisagem ou um espectáculo. Quando utilizamos o termo valor, podemos estar-nos a referir à qualidade de valor de uma coisa; isto acontece quando nos referimos ao valor artístico da Gioconda de Leonardo Da Vinci, da 40ª sinfonia de Mozart, do “Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett. Por último, ao utilizar o termo valor podemos querer referir-nos à própria ideia de valor em si mesma, por exemplo a ideia de beleza
A “Filosofia dos Valores”, enquanto corrente filosófica, é relativamente recente na história da filosofia, embora o tema dos valores, sobretudo através da noção de bem como objecto de reflexão filosófica, seja tão antigo como a própria filosofia. Assim, e só para ficar por referências pontuais, já Platão (428/7-348/7 a.C.) e Aristóteles (384/83-322 a. C.) trataram largamente da noção de
Bem e da virtude como caminho para a felicidade; Santo Agostinho (354-430) abordou a virtude como ordem teológica que rege a sociedade, ou deve reger; os medievais distinguiam quatro tipos de ideais (transcendentais): a Verdade, o Bem, o Belo e o Ser; Malebranche (1638-1715) falou da ordem qualitativa da perfeição e Kant (1724-1804), na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, distinguiu o valor de troca do valor da dignidade.
A Axiologia, enquanto Filosofia dos Valores, começou no fim do século XIX e desenvolveu-se na primeira metade do século XX, sendo várias as causas do seu aparecimento. Joseph De Finance aponta as seguintes: o descrédito do “em si”… e o interesse pelo “para mim”; a reacção contra o objectivismo cientista – tenha-se presente a importância do positivismo na segunda metade do século XIX; a tragicidade e grandes mudanças da época que agudizaram o sentimento de precariedade da existência: o que é que vale? Vale a pena viver? Que valor tem a vida humana? – tenham-se presente as guerras que assolaram a Europa no fim do Século XIX e princípio do século XX; a relevância do tema valor percebido em economia: subjectividade/objectividade dos valores; a influência dos filósofos da suspeita: Nietzsche (1844-1900), Marx (1818-1883) e Freud (1856-1939) e o aparecimento da fenomenologia que se revelou como o método para a descrição da consciência axiológica.[5]
Temas fundamentais da Axiologia
Os temas fundamentais da Filosofia dos Valores são os seguintes: O que são os valores?; quais são as características dos valores?; quais são os valores?; a crise dos valores no mundo contemporâneo; como se apreendem os valores?; a fundamentação dos valores e a classificação dos valores.
Relativamente à resposta à primeira questão, há um certo consenso entre os autores ao considerarem que os valores não se definem, descrevem-se ou sugerem-se. Assim, no seu famoso Vocabulaire Technique et Critique de la Philosophie de André Lalande, pode ler-se que o valor é «(subjectivamente) carácter das coisas consistindo em que elas são mais ou menos estimadas ou desejadas por um sujeito ou, mais ordinariamente, por um grupo de determinados sujeitos» e «(objectivamente e a título categórico) carácter das coisas consistindo naquilo que elas merecem mais ou menos estima»,[6] e Foulquié, no seu dicionário, diz que o valor é «em certo sentido abstracto, propriedade ou carácter daquilo que é não apenas desejado, mas “desejável”».[7]
De facto o valor é algo que é indefinível. É possível tentar descrever uma pintura, “explicar” uma sinfonia, declamar um poema para levar o interlocutor a cair na conta, a “sentir” ou a descobrir o valor presente na pintura, na sinfonia, no poema. Neste sentido o valor é uma qualidade que não subsiste por si, não tem existência própria à maneira das ideias platónicas. Por si, existe o conceito de valor e dos valores: beleza, utilidade, etc. Os valores existem enquanto ideias, enquanto “entes de razão”, para usar uma expressão dos escolásticos. Paul Valadier afirma que «O valor é […] o que escapa à discussão razoável, o que se revela como sendo incontestável no campo de influência do cada um por si».[8] É nesta linha de pensamento, segundo a qual os valores não têm existência objectiva, não existem como as coisas existem, que é frequente fazer-se esta afirmação: os valores “valem”, não “são”. Fenomenologicamente valor é o que “aparece” como estimável, amável, como quase uma qualidade de que o bem se apresenta “revestido”. Fenomenologicamente o Bem apresenta-se como fim para o qual o sujeito tende, como um valor que se aprecia, estima, admira; ontologicamente o Bem apresenta-se como perfeito e como perfectivo: tem perfeição e dá perfeição a quem o adquire.
Quanto às características dos valores. Em primeiro lugar, os valores aparecem sempre relacionados com um sujeito. Tal como o conhecido implica sempre a existência de um sujeito que conhece, um valor tem sempre relação com um sujeito que o apreende. É por esta razão que a filosofia dos valores pressupõe sempre uma filosofia da subjectividade.
Em segundo lugar os valores são estimáveis por si mesmos; o belo é apreciado por ser belo, o bom, por ser bom, o útil, por ser útil.
Em terceiro, os valores são transcendentes ao dado, isto é nenhuma realidade valiosa realiza plenamente o valor que possui. Assim nenhuma pessoa ou objecto belo esgotam a beleza, nenhuma acção boa esgota a bondade, nenhuma pessoa realiza na plenitude a santidade.
Em quarto lugar, o valor tem relação com a existência: exige-a; o que vale, merece ser feito e merece continuar a existir; destruir um valor, por exemplo uma obra de arte, repugna-nos.
Embora com excepções, a bipolaridade é uma característica dos valores: nos valores encontramos um pólo positivo e um pólo negativo. Assim temos a beleza e a fealdade, a bondade e a maldade, a utilidade e a inutilidade, por exemplo. Esta polaridade apresenta-se orientada; propriamente falando só o pólo positivo é valor e se justifica por si; o pólo negativo com maior exactidão deveria chamar-se anti-valor. Há, contudo, alguns valores em que não se verifica essa bipolaridade. Por exemplo o valor da existência não é bipolar porque a não existência não existindo, não vale.
A heterogeneidade é a sexta característica dos valores; contrariamente ao que defendia Jeremy Bentham, como veremos no terceiro capítulo, não há denominador comum entre os valores.
Por último os valores são hierarquizáveis; eles não valem todos o mesmo; há valores mais valiosos e outros menos, além disso pode haver, e há, desacordo quanto à escala de valores e ao critério a usar para a elaborar. Aliás, se os valores tivessem todos o mesmo valor, tudo valeria a mesma coisa, o que levaria à conclusão de que nada valia coisa nenhuma.
Jean-Jacques Wunenburger, no seu livro Questions d’étiques, afirma que
«Não é possível esquecer […] que os homens são confrontados com questões e escolhas éticas, aqui e agora, em contextos históricos e culturais particulares, que obrigam a renovar por vezes a formulação de problemas, até mesmo a inventar respostas inéditas. […] Pode mesmo acontecer que em certos momentos da história os homens conheçam uma inquietação ou uma desorientação (désarroi) moral mais intensa que em outros períodos, o que favorece a emergência de uma “crise” dos valores, ela mesma contemporânea de uma crise de civilização, como o ilustra, por exemplo, a passagem do paganismo para o cristianismo no começo da nossa era».[9]
Vive-se hoje uma tal situação retratada na expressão “crise dos valores” muito presente nos debates e que afecta a vida individual e colectiva. Como afirma Michel Renaud:
«por toda a parte fala-se ou de crise de valores ou de desaparecimento de valores, ou de criação de novos valores, de tal modo que, pelo menos, se pode afirmar que existe hoje um problema quanto aos valores. Isto nem sequer significa que o problema seja novo, que não tenha existido antes, mas a consciência, ainda que vaga, da sua existência surge do mal-estar relativo à compreensão contemporânea dos valores».[10]
A expressão “crise de valores”, contudo, é pouco rigorosa porque ambígua, pelo que se torna necessário esclarecer o que se pretende significar com o seu uso.
“Crise de valores” pode querer significar a presença na sociedade de valores contraditórios e isso corresponde a uma experiência que o ser humano tem. Hoje, de uma maneira aguda, tem-se consciência desta situação quanto mais não seja devido à experiência de se viver numa “aldeia global”. Os valores mais respeitados numa cultura podem não ser os mesmos de outra e, na mesma cultura, a própria vivência de valores que conflituam entre si leva a esta sensação de crise. Por exemplo o valor da liberdade de expressão é hoje considerado um valor quase absoluto mas, por outro lado, o direito à privacidade nunca foi tão valorizado como agora.
Por vezes fala-se em crise de valores para significar a ausência de valores. Ora a afirmação não tem correspondência na realidade. O ser humano não pode viver como ser humano, isto é, como ser racional, sem formular juízos de valor sobre tudo o que o rodeia e não há nenhuma comunidade humana sem valores. Se hoje se valoriza mais o que é jovem, belo e rico, isto não quer dizer ausência de valores, mas antes uma hierarquia de valores diferente da hierarquia feita por outras gerações que valorizavam mais a experiência dos mais velhos e colocavam os valores religiosos à frente dos valores estéticos e económicos. A convivência não é possível sem um conjunto mínimo de valores partilhados e o ser humano tem sempre no seu horizonte valores. O ser humano não é axiologicamente neutro; é um ser de desejo e é atraído por aquilo que parece satisfazer o desejo. O que parece satisfazer o desejo apresenta-se como valioso, com valor.
A expressão “crise de valores” é por vezes utilizada como manifestação da vontade de regressar a uma hierarquia que coloca à frente de todos os valores os valores éticos, em que se cultive a solidariedade e se respeite a velhice, por exemplo. Nesta acepção, a utilização da expressão tem sentido; embora não seja totalmente correcta, já é mais aceitável porque manifesta uma vontade de regressar ao primado da ética e da moral, o que é desejável porque o ser humano só se realizará se viver moralmente bem, não esquecendo os valores da amizade, da entreajuda e da solidariedade em favor dos valores económicos ou estéticos.
Por vezes, contudo, quem se queixa da “crise de valores” pretende voltar a valores de um passado recente (do século XX), em que se defendiam valores que hoje não são aceitáveis como, por exemplo, a existência de um código moral único, o valor do nacionalismo exagerado, em que só o que é nosso é bom, o valor da raça pura, como fez Hitler que queria defender e apurar a raça ariana eliminando os judeus, os ciganos e os pretos, o valor do autoritarismo do Estado, em que o ditador mandava matar aqueles que diziam ou faziam o que não lhe agradava, etc. Neste sentido a expressão crise de valores está totalmente errada, porque, apesar de a nossa sociedade não fazer a hierarquia mais correcta dos valores, estes valores referidos, defendidos no passado, são totalmente inaceitáveis.
A captação ou apreensão dos valores é um dos temas mais complexos da Axiologia. Os valores existem independentemente do sujeito? Ou, diferentemente, é o sujeito que cria os valores no acto de valorizar? Michel Renaud, no texto já citado, põe esta questão nestes termos: será que os valores antecedem ou pré-existem relativamente à acção ou é a acção que cria o valor? Ou noutros termos: os valores são a priori ou a posteriori? É o confronto da tese subjectivista e da tese objectivista sobre os valores e a admissão e a abertura da discussão que muitas vezes leva a uma visão céptica ou relativista dos valores.[11]
Perante esta problemática o que vale a pena discutir é se o objectivismo axiológico ou o seu oposto, o subjectivismo, permitem compreender a experiência humana da vivência dos valores pois que se, por um lado, não é o afirmar o valor de um quadro que dá valor estético a esse mesmo quadro, por outro, não se pode falar de valores sem referência a um sujeito que os apreende.[12] Além disso, a apreensão dos valores implica uma certa pré-compreensão desses mesmos valores. A partir da teoria da percepção directa dos valores morais (modelo “perceptual”), pode dizer-se: se é verdade que uma coisa aparece sempre a partir de uma perspectiva, isto não significa que não haja nela algo de objectivo e de real.[13]
Não há subjectividade pura nem objectividade pura. Admitir uma dimensão subjectiva na experiência axiológica não é enveredar pelo relativismo e pelo cepticismo. Como afirma Paul Valadier:
«Não se trata aqui de cepticismo ou relativismo, mas sim de um caminho de verdade em verdade. E é sem dúvida necessário descobrir que falar de valor não é o mesmo que falar de uma base, de um fundamento, de um alicerce, sobre os quais nos apoiaríamos e que se tornariam necessários, mas que isso tem a ver com o que dá perfume, gosto, sabor à existência».[14]
É partindo da vivência que se pode formular o juízo de valor e a vivência tem sempre uma marca de subjectividade. Mas o juízo faz parte do discurso e esse é objecto de discussão e de justificação argumentativa, o que não deixa a questão dos valores à mercê da subjectividade, pois que a argumentação visa a verdade, embora nunca sejamos senhores dela.
«O valor da vida e o valor de qualquer valor revelam-se na tarefa sublime de interrogar permanentemente, de atingir a pouco e pouco a luz, não através de um deslumbramento enganador, mas sim da descoberta maravilhosa de que no mundo existe sempre mais do que aquilo que dele apreendemos».[15]
Michel Renaud tem razão quando afirma que:
«entre o a priorismo e o a posteriorismo dos valores se introduz […] uma possibilidade de compreensão de tipo hermenêutico. A teoria do círculo hermenêutico pode ajudar a formular conceptualmente a dificuldade específica da descoberta dos valores»,[16]
circulo hermenêutico que o autor explica de seguida, mostrando como a aceitação espontânea de um valor é acompanhada de um conjunto de elementos da atestação, de opiniões e de marcas de confiança que não têm suporte em conhecimentos científicos ou filosóficos mas que levam a tomar a decisão do “crer” hermenêutico que inclui uma verdadeira aposta sobre o que ainda não foi ganho ou verificado racionalmente.
«O momento do “crer”, da decisão, desenvolve um dinamismo de compreensão, de interpretação à luz da opção feita; em contrapartida, esta interpretação justifica a opção ou a decisão tomada inicialmente».[17]
Há, pois, um movimento da vivência irreflectida para a compreensão e da compreensão para a vivência reflectida. É o movimento do “creio para compreender e compreendo para crer”.
Ortega Y Gasset afirma que o valor é o cariz que sobre o objecto projectam os sentimentos de agrado e de desagrado do sujeito, isto porque aquilo que nos agrada parecenos bom, porque encontramos nele o carácter valioso da bondade. Daqui a importância que tem para alguém o valor. Este aspecto subjectivo remete para a objectividade, perante o sujeito que valora, perfila-se algo para o valioso.
Pelas características axiológicas, o objecto será sempre para o sujeito, dado que a objectividade dos valores será equivalente à subjectividade dos mesmos.28
Segundo M. Scheler, a superioridade de um valor não estriba que seja preferido, mas em que seja preferível. Segundo este fenomenologista, vivemos sempre o abandono de um valor superior por outro inferior, como um envelhecimento ou uma debilidade. Será, pois, a característica essencial e primordial do valor mais alto e a característica mais alta, que é o valor absoluto. O filósofo da axiologia assinala variados critérios para diferenciar a categoria de um valor, como: duração (os valores inferiores são passageiros e os superiores são permanentes); divisibilidade (os bens materiais são divididos e distribuídos, os valores como a justiça, a paz, a ciência não se dividem); fundamentação: todos os valores possíveis radicam no valor de um espírito pessoal e infinito e de um universo de valores, do qual depende); profundidade da satisfação (aqui a satisfação refere o gozo espiritual, os valores mais elevados produzem uma satisfação mais profunda e intensa no coração do homem); grau de relatividade (os valores sensíveis guardam estreita relação com os sentidos, enquanto que os morais são independentes relativamente à nossa sensibilidade).29
Mercê do valor, as realidades adquirem características que sobressaiem, ao nível das realidades objectivas, destacando-se das acessórias ao ostentar uma justificação interna. O valor confere a certos actos humanos o enlevo do acontecimento e conduz-se, por cima, dos factos vulgares, que podem não fazer história.
A pessoa que está dominada pelo orgulho e pela concupiscência não conhece outra fonte de motivação, outro ponto de vista por aquilo que assume o carácter de importante.30
Nestes casos, o comportamento não se orientará exclusivamente até à medida subjectiva de um bem para eles mesmos, senão exclusivamente para a satisfação subjectiva.
A categoria da «importância», a que chamamos de bem objectivo para a pessoa, prevalece, historicamente, no conceito de bonum, que de facto na realidade guarda uma relação secundária, relativamente ao valor.
O Bem objectivo, para a pessoa, pressupõe necessariamente o importante per se, isto é, o «valor» (valere).
Na nossa motivação, existem três categorias de importância essencialmente diversas. Trata-se de três razões possíveis que podem fundamentar a importância de um objecto. A grande diferença axiológica estriba-se em considerar o ponto de vista do valor ou daquilo que é subjectivamente satisfatório.
O valor, o bem objectivo para a pessoa unica e subjectivamente satisfatório, constituem três tipos diferentes de importância na nossa motivação. Para Von Hildebrand ,constitui um erro identificar o valor (valere) com o fim (finis), isto é, com um ser que possui a característica de que é procurado por si mesmo, baseando-se em que ambos, o valor e o fim, se podem caracterizar como importantes em si mesmos.
A clássica distinção definida por Aristóteles, na Ética a Nicómaco, retomada por S. Tomás de Aquino, alude ao bonum honestum, bonum delectabile et bonum utile.31 Por aqui se vê que existe uma escala hierárquica dos meios, referida não só à dignidade dos fins, senão, também, à aptidão aos mesmos. O Samaritano vivência um bonum honestum , enquanto que o Sacerdote e o Levita partilham um bonum utile.
No momento de estabelecer a escala de eficácia ou gradação na aptidão dos meios intervêm, entre outros, a maior segurança, que brinda com facilidade para obter o fim querido e, também, a circunstância dos efeitos colaterais negativos.
Esta motivação imperfeita, que toca o anti-valor, implica uma cegueira para a importância objectiva própria de qualquer objecto e entranha, portanto, uma «falsificação do universo».
Fica claro que o carácter do bem objectivo para a pessoa não é só uma categoria da motivação humana, senão o bem objectivo que é a única característica do ser.
A bondade moral é o maior dos bens objectivos para a pessoa. Para compreender a relevância do bem objectivo, que é a bondade, exige-se a prévia apreensão do valor da bondade moral. Precisamente porque a bondade moral é um «valor» (valere)e possui-lo, constitui um bem objectivo para a pessoa. O valor é aqui o principium, enquanto que o carácter ou importância do bem objectivo é o principiatum, isto é, por implicar valores é um bem objectivo, para a pessoa. Refere-se como uma Bondade Esplancnofânica, no Samaritano, que tem o principio e fim no Pai das Misericórdias.
Também, o valor é pressuposto ou conditio sine qua non de outro tipo fundamental de bens objectivos: a possessão e o gozo de bens, que nos proporcionam, uma felicidade genuína, tais como: conhecimento da verdade, a amizade, o conhecimento de uma personalidade esplendorosa, a contemplação da beleza da natureza ou da arte. Todos eles pressupõem o valor do bem, como a aptidão para proporcionar a felicidade.32
Assim se passa com os bens objectivos superiores. Os bens elementares possuem um «valor indirecto», como meios de uma parte da existência humana, a qual possui valor.
Perante o valor, nenhum bem objectivo será indiferente. Possui um valor positivo pela qualidade de «pró», como dom para a pessoa humana. O valor, que possui a pessoa humana, determina que todo o ser, que tenha este carácter benévolo, seja um dom para a pessoa, que adquira precisamente, por ela, um valor indirecto. A qualidade do bem objectivo não radica no valor indirecto, porque é um bem objectivo. Esta propriedade é a fonte do seu valor indirecto. Naturalmente, parece que aqui está o principiatum e a importância do bem objectivo como principium. A última fonte deste valor é evidentemente a pessoa humana. Também aqui a base última desta importância indirecta é um «valor» (valere). O maior valor da conduta exemplar do Samaritano reside na deliberação esplancnofânica.
Na esfera dos valores, não só existe uma escala, como também uma «graduação hierárquica», em virtude da qual podemos dizer que um valor é superior e outro inferior, ou, segundo o valor inerente, de um bem superior e do outro inferior. Esta ordem hierárquica é de tal relevância, que o aderir ou não aderir a ela, na –ordo amoris– será, segundo S. Agostinho, a fonte da moralidade. Existem diferentes domínios ou «famílias» de valor, cuja diferença os torna fundamentalmente distintos. Os valores superiores da parábola do Bom Samaritano radicam na aretologia esplancnofânica do Samaritano, que fora impulsionado por ser Bom, pela ternura para com o Desvalido no Caminho ( quidam homo ) . Esta nova ordo caritatis , segundo a Revelação Veterotestamentária, aparece na misericordiae ordo, como se revela na excelência da conduta do Samaritano, que foi uma conduta esplancnofânica.
Estas «hierarquias axiológicas» poderão ser ascendentes ou descendentes, como se observa pelo esquema anteriormente apresentado. Qualquer uma das formas possui «determinação axiológica», porque evoluirá no agir e no ser. A conduta poiética do Samaritano, da parábola do Homo Viator, foi ascendente, enquanto que a conduta do Sacerdote e do Levita fora descendente.
Os mais significativos são os espirituais, que possuem graduação. Assim, a humildade é mais eminente do que a sinceridade, bem como a «profundidade espiritual», relativamente ao engenho, porque a humildade omnium virtutum mater , segundo S.Agostinho.33
Perante o eminente valor de um ser pessoal, como tal, perante o valor ontológico da pessoa, a dignidade de um ser com alma espiritual, investido de razão e de livre vontade, não dúvida de que nos encontramos perante algo intrinsecamente importante. O Samaritano ao prestar cuidados foi humilde e sincero segundo a veritas humitas est.
Não existe nenhuma antítese qualitativa de elevado valor do ser humano. O ser impessoal carente deste valor não possui um carácter negativo. Não existe a oposição contrária à pessoa, somente a sua contraditória e esta não existência não é, enquanto tal.
De modo diverso, o valor moral, por um lado, e o valor ontológico da pessoa são um reflexo de Deus. Os valores morais manifestam Deus de um modo específico, se são expressão do mesmo Deus, como reflexo mais íntimo da sua «infinita bondade», como diz Von Hildebrand, surgem como «mensagem do alto».
O eminente valor ontológico da pessoa humana reflecte Deus não de um modor tão directo, como os valores morais quanto pela sua realidade.
Neste sentido, o homem é imago Dei. Todos os valores, num ser criado, reflectem de modo específico Deus, que os reúne de modo eminente: «Nada é bom, sem Deus» (Lc 18, 19).
No tocante aos valores ontológicos, trata-se de um reflexo exemplar, modelo ou paradigmático, que brilha e resplandece em todos os seres.
Quoad se, o valor ontológico pressupõe Deus, enquanto que quoad nos conduz-nos a Deus, como ponto de partida ou uma indicação ou ordenação para este Ser. Em síntese, o valor ontológico é um esplendor da infinita bondade ontológica de Deus.
Outra característica fundamental revela-se nas diversas atitudes, que o homem deveria adoptar perante o seu próprio valor ontológico e para os próprios valores qualitativos. A verdadeira humildade estende um véu sobre todos os valores qualitativos, que mostra a nossa própria pessoa, como capax universi .
Porém, diante dos valores morais poderemos falar de graus e dizer que um homem é mais leal, mais justo do que outro, isto é, possui esta virtude em grau superior a outra.
Com efeito, os valores ontológicos realizam-se mediante a existência de um ser humano.
Nunca cessam. Os valores morais tornam-se reais, mediante as acções livres da pessoa, quando possuem uma virtude. Deixa de ser real, quando a pessoa perde talexpressão ontológica.
Um conhecimento claro e profundo dos valores exige mais requisitos morais que qualquer outro tipo de conhecimento. No domínio dos valores morais, exige-se mais, não somente é necessária em maior medida a reverência e a abertura do nosso espírito, perante a voz do ser, um maior grau de conspiração com o objecto, requerendo-se, também, uma disponibilidade da nossa vontade para nos adaptar à exigência dos valores, quaisquer que sejam estes. Aqui estyá a espancnofania axiológica do Samaritano.
O decisivo, na conduta moral, são as disposições interiores: si oculus tuus fuerit simplex, totum corpus tuum erit lucidum (Mt 6, 22). Aqui aparece o sensus numinis do Desvalido no Caminho ( nu, doente, preso, marginal ).
Do coração do homem brotam as obras que o enobrecem e elevam ou as que o degradam.
Tanto o bem como o mal são originados da interioridade pessoal. As disposições interiores revelam-se por meio de seus frutos, que são as obras.
Trata-se, pois, da trágica ambiguidade do coração. O bem é a fonte do valor moral do nosso agir ou pode converter-se em cúmplice da injustiça. O coração, que é o centro dos valores, deve ser purificado. O coração puro faz fecundar a luz da inteligência. Onde está o teu tesouro, aí está o teu coração (Mt 6, 21). A direcção fundamental do coração leva consigo um compromisso total. Segundo a parábola do Bom Samaritano o centro da narrativa reside nos rahmim, que segue o sentido da antropologia veterotestamentária.
Assim, entende-se o coração como núcleo dinâmico da pessoa. O coração aparece e manifesta-se como o resumo, a fonte, a expressão e o fundo último dos pensamentos, das palavras e das acções. O homem vale, o que vale o seu coração. A essência da reposta ao valor, dado o seu papel proeminente na Ética, orienta o nosso interesse até à análise das respostas ao valor e as motivadas só pelo subjectivamente satisfatório. Existem certas respostas afectivas que, em razão da sua essência, estão motivadas exclusivamente pelos valores. Na verdade, também, existem respostas afectivas geradas por algo subjectivamente satisfatório ou insatisfatório.
Em resposta ao valor (valere), a fonte do nosso interesse, até ao objecto, fundamentase na sua intrínseca bondade, na sua beleza e eminente valor e na entranhável riqueza do importante em si mesmo.
Esta intrínseca e luminosa importância axiológica exige que nos demos de um modo novo, exige uma transcendência, um ligar-se a algo maior do que nós próprios.36
Tal conhecimento constitui a base fundamental e indispensável para a moralidade. Este enfoque racionalista fora refutado pelo poeta Ovídio, no seu famoso verso: «vejo o melhor e aprovo, mas sigo o pior» e sobretudo, por S. Paulo, quando diz: «não faço o bem que quero, mas o mal que não quero» (Rom 7, 19).38 A apreensão do valor não inclui uma recta direcção da vontade. O conhecimento seguro e irrefutável dos valores não faze um homem bom, não contém o elemento de entrega pessoal e a transcendência própria da resposta ao valor. A participação nos valores pressupõe a união alcançada na compreensão do mesmo e implica algo de novo, em novo grau de união mais íntima, profunda e superior à do conhecimento.
CONCLUSÃO
Se é certo que a Filosofia começou pela tentativa de responder às perguntas que a observação da natureza suscitava, tem que se reconhecer que os Sofistas, Sócrates, Platão e Aristóteles centraram-na no Homem, visto essencialmente como cidadão, e que o Cristianismo, seguindo a tradição judaica, passou a encarar a pessoa ou subjectividade como valor absoluto que, sendo o centro e a medida de todas as coisas, não pretendia significar com isso que o relativismo era o caminho da sua realização. A filosofia sempre se apresentou como um questionamento em ordem a conhecer para lá das aparências e cedo encontrou como seu objecto próprio o homem, pelo que a antropologia deve ser considerada como filosofia primeira[18].
Na dilucidação do que é o ser humano, a filosofia praticamente desde as suas origens descobriu a dimensão moral como sua especificidade maior, embora na Grécia essa dimensão fosse indistinta da dimensão política, pelo que autores como Platão e Aristóteles elaboram éticas inseparáveis da política e, por isso, as suas obras de ética eram simultaneamente obras sobre a política, como no caso da República de Platão, ou tinham o seu complemento nas obras sobre a Política, como no caso de Aristóteles[19]. Em meu entender, esta situação derivou do facto de os gregos não terem uma concepção de pessoa como valor absoluto, grande novidade da mensagem judaico-cristã[20], pelo que, na cultura grega, era a Ética que se subordinava à Política e não, como o Cristianismo levou a descobrir, a Política à Ética.
Nesta caminhada histórica, a filosofia, como disse, cedo descobriu como sua questão primeira o ser humano, isto é, passou a ser fundamentalmente uma antropologia e, dentro desta, a Ética ganhou imediatamente papel de destaque. Se isso é evidente na Sofística, deve reconhecer-se que ganha importância maior em Aristóteles, em cuja obra aparece a primeira sistematização das diversas disciplinas filosóficas e em que ganha relevo a Ética a que o autor dedicou três escritos: a Magna Moralia, a Ética Nicomaqueia e a Ética a Eudemo, tendo, principalmente a segunda, exercido imensa influência ao longo da história da disciplina. Foi, sem dúvida, a caracterização que este autor deu à Ética que a marcou para sempre. Para ele a Ética é um saber prático, não no sentido de ser uma técnica, mas no sentido de orientar as decisões prudentes em ordem à procura da vida boa.
Até à Idade Moderna, a Ética sempre reflectiu sobre o agir moral, tentando encontrar a norma moral que permitisse ao homem encontrar a felicidade, embora esta noção de felicidade tivesse mudado ao longo da história. O modo de entender a vida boa no pensamento de Aristóteles, dos Epicuristas, dos Estóicos, de Santo Agostinho, de São Tomás, até Kant, variou, mas a Ética sempre procurou a compreensão da vida moral.
Com Kant temos uma viragem profunda da Filosofia Moral, temos uma revolução copernicana.[21] Até ele sempre se pensou que a vida moral se consubstanciava naquilo que se age (faz) e com ele passou-se para a questão do como actuar; de uma Ética teleológica, que discute a vida boa a atingir, fim último da vida moral, passou-se a uma Ética deontológica que visa justificar a norma moral em cuja obediência reside o bem moral, a ética tem e é um outro vaslor,mas, em todo o caso, tem que se reconhecer que ainda foi a questão do viver humanamente que continuou a ser o objecto da Ética. Pode, pois, concluir-se que, ao longo de toda a sua história, a Ética sempre se preocupou com uma única questão: como viver humanamente.
Nesta caminhada histórica, a filosofia, como disse, cedo descobriu como sua questão primeira o ser humano, isto é, passou a ser fundamentalmente uma antropologia e, dentro desta, a Ética ganhou imediatamente papel de destaque. Se isso é evidente na Sofística, deve reconhecer-se que ganha importância maior em Aristóteles, em cuja obra aparece a primeira sistematização das diversas disciplinas filosóficas e em que ganha relevo a Ética a que o autor dedicou três escritos: a Magna Moralia, a Ética Nicomaqueia e a Ética a Eudemo, tendo, principalmente a segunda, exercido imensa influência ao longo da história da disciplina. Foi, sem dúvida, a caracterização que este autor deu à Ética que a marcou para sempre. Para ele a Ética é um saber prático, não no sentido de ser uma técnica, mas no sentido de orientar as decisões prudentes em ordem à procura da vida boa. Até à Idade Moderna, a Ética sempre reflectiu sobre o agir moral, tentando encontrar a norma moral que permitisse ao homem encontrar a felicidade, embora esta noção de felicidade tivesse mudado ao longo da história. O modo de entender a vida boa no pensamento de Aristóteles, dos Epicuristas, dos Estóicos, de Santo Agostinho, de São Tomás, até Kant, variou, mas a Ética sempre procurou a compreensão da vida moral.Com Kant temos uma viragem profunda da Filosofia Moral, temos uma revolução copernicana.[22] Até ele sempre se pensou que a vida moral se consubstanciava naquilo que se age (faz) e com ele passou-se para a questão do como actuar; de uma Ética teleológica, que discute a vida boa a atingir, fim último da vida moral, passou-se a uma Ética deontológica que visa justificar a norma moral em cuja obediência reside o bem moral, a ética tem e é um outro vaslor,mas, em todo o caso, tem que se reconhecer que ainda foi a questão do viver humanamente que continuou a ser o objecto da Ética. Pode, pois, concluir-se que, ao longo de toda a sua história, a Ética sempre se preocupou com uma única questão: como viver humanamente.A actuação do espírito humano manifesta-se em comportamentos ou atitudes.
Os valores são conjunto de crenças e referências do homem a respeito da verdade, da beleza, do valor de todo o objecto, pensamento ou comportamento. São acções orientadas e dão uma direcção e uma medida à vida de cada um.Ao longo do ciclo vital, o homem perde, adquire ou transforma valores anteriores. Será necessário que cada um clarifique os seus valores, dado que estes permitem aumentar o nível da realização de si mesmo.45O valor é algo que é objecto de uma experiência, de uma vivência por parte do sujeito ou por parte da pessoa podemos ver o valere de uma personalidade, a beleza de uma paisagem e o carácter sagrado de um lugar. Estamos perante valores éticos, estéticos e religiosos. E a nossa vivência destes valores é um facto real, quando inserida naquilo a que poderemos chamar de «qualidades axiológicas», de um quale dos objectos em questão: homem, paisagem ou lugares. É este quale que constitui o carácter e desperta em nós o sentimento respectivo ou a referida vivência.Para M. Scheler, existe uma relação íntima entre valor e «deve-ser», onde todo o «deveser» se apresenta como valor. Este «deve-ser» é distinguido de duas formas: uma ideal e outra normativa.O «deve-ser» vive-se num valor por nós contemplado, no aspecto da sua relação com um possível ser real. Será, neste sentido, que podemos falar de um «dever ser ideal» (ideales sollen). Mas a este, contrapõe-se outro «dever-ser» por nós contemplado, dentro de uma outra relação: a que se estabelece entre ele, no seu conteúdo e um certo querer que se propõe realizar esse conteúdo, o dever ser da obrigação .Scheler é, portanto, da opinião que o «dever ser» ideal pertence à essência dos valores, quando estes são contemplados na relação com uma possível realidade. O «dever ser» ideal tem o seu fundamento na relação entre o valor e a realidade. Assim, os valores, quando contemplados em si, não contêm o momento do dever ou obrigação. Todo o «dever-ser» está associado à esfera da existência ou não-existência dos valores.46
Como todos os valores se referem a um sujeito, poderemos classificar estes em duas classes fundamentais: valores sensíveis e valores espirituais. Os primeiros referem-se ao homem como simples ser da natureza. Os segundos são para o homem como um «ser espiritual». Esta análise corresponde à temática central da antropologia axiológica de M.Scheler, centrada na noção de pessoa como «acto axiológico». Segundo a parábola, encontramos a conduta poiética ao Desvalido como uma forma de responsabilidade axiológica, referida como responsabilidade agápica por meio do ex misericordiae eventu Dei.
A pessoa surge como unidade de ser, concreta e essencial de actos. Significa, que, para M. Scheler, a pessoa não é um simples conjunto de actos, que se unificam num centro comum, como os raios de luz convergem num só ponto. Assim, em M. Scheler, a pessoa é uma unidade concreta, isto é, possui uma identidade, considerada por Scheler como primeiro valor. Numa palavra, possui auto-consciência do ser pessoa, como realidade prioritária, significando que, por um lado, o homem se diferencia dos outros seres animais e, por outro, se relaciona com o mundo.Segundo M. Scheler, não basta, para ser pessoa, auf dem Rücken, ter a capacidade de pensar nem a capacidade de pensamento reflexivo sobre si mesmo, mas significa muito mais: a autoconsciência. Só se é pessoa, quando esta integra todas as classes possíveis de consciência: a cognitiva, a volitiva, a sentimental, a do amor e do ódio. Significa que a autoconsciência é sinónimo de identidade, quando compreende todas as virtualidades da pessoa.A pessoa, segundo Scheler, é acto unificado, como acto, essencialmente, de natureza unificada num caminho concreto particular. Os actos são as pessoas. Se um acto não pode ser um objecto, então a pessoa, que vive na execução de actos, a fortiori, nunca poderá ser um objecto.47Assim, significa que o homem é uma espécie de «universo pessoal» capax universi. A pessoa é, de certa forma, todas as coisas, enquanto que é um «microcosmos» devido à sua posição superior no mundo, por um lado, e ao seu poder de dar sentido ao mundo, por outro.Os valores são qualidades autênticas e verdadeiras a priori, não são aparentes nem falsas, mas sim objectivas, independentemente dos bens e dos fins. São a priori, porque nos indica que não são fruto da experiência indutiva, ou seja, designa aquelas unidades significativas e ideais, que são dadas, por si mesmas, em virtude do conteúdo de uma intuição imediata.Significa que o ser dos valores é independente das variações e transformações da existência dos bens, não se podendo conceber os fins de uma acção moral, separadamente dos valores a serem realizados.48O valor da pessoa coloca-se por M. Scheler, pelo grau supremo da hierarquia axiológica, no vértice da pirâmide, local onde convergem todas as arestas, que ascendem progressivamente até ele. Naturalmente, a pessoa é o «autovalor», como o fornecedor de referência de todo e qualquer valor infra-humano. Pelo carácter dinâmico que M. Scheler reconhece na pessoa, não só a reduz a um conjunto de actos, mas explicita, de forma clara, o «valor da identidade», conforme aquele que ele mantém sobre a autoconsciência da pessoa. A pessoa adquire, maior sentido de identidade, na medida em que sai de si mesma. Para M. Scheler, ela surge do valor da própria identidade do homem. O valor do núcleo da pessoa é objecto da participação activa do homem. Com razão se salienta a relação do valor ao sujeito, pois o valor aperfeiçoa o sujeito como bonum est perfectivum subiecti. O Bom Samaritano realizou este Bonum , que lhe foi oferecido pelo Pai das Misericórdias.
[1] A elaboração deste texto tem em grande conta as folhas de apontamentos que o Prof. Roque Cabral escreveu para os seus alunos e que nunca foram publicadas em artigos ou livros.
[2] LÉVINAS, E. – Totalité et Infini. Essai sur l’exteriorité. 4ª ed. 3ª impression. La Haye: Martinus Nijhoff, 1961. 1980, p. 82. Sobre o tema da fruição em Lévinas cf. Idem, 81-94.
[3] BRITO, J. H. Silveira de – De Atenas a Jerusalém. A subjectividade passiva em Lévinas. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2002, p. 51.
[4] HESSEN, J. – Filosofia dos valores. Coimbra: Edições Almedina, 2001, p. 43.
[5] DE FINANCE, Joseph – Éthique Générale. Roma: Presse de L’Université Grégorienne, 1967, 47-48.
[6] 12ª ed. Paris: P.U.F., 1976, p. 1183.
[7] FOULQUIÉ, P.; SAINT-JEAN, R. – Dictionnaire de la Langue Philosophique. 2ª ed. Paris: P.U.F., 2969, p. 751.
[8] VALADIER, Paul – A anarquia dos valores. Será o relativismo fatal? Lisboa: Instituto Piaget, 1996, p. 19. Este livro é uma óptima discussão sobre os valores.
[9] WUNENBURGER, J.-J. Questions d’éthique. Paris: P.U.F., 1993, p. 309.
[10] RENAUD, Michel – «Os valores num mundo em mutação». Brotéria – cultura e informação. 139(1994), p. 299
[11] Sobre o debate entre relativismo ou objectividade dos valores, especificamente no mundo da moral cf. HUGUES, Gerard J. – «Ethical Objectivity: Sense, Calculation or Insight?». Revista Portuguesa de Filosofia. 62(2006), pp. 89-106.
[12] Sobre este tema o livro de Paul Valadier já referido é muito elucidativo. É de ler o capítulo 5º, pp. 163-197 e o último apartado, pp. 199-209. Esta problemática tem o seu início na revolução copernicana que se dá na Modernidade, em que surge a teoria da representação e a sua aplicação ao campo normativo (ética e política). Sobre este tema é particularmente elucidativo o texto titulado «Civilização moderna e crise de sentido» de Henrique C. Lima Vaz (VAZ, Henrique C. de Lima – Escritos de Filosofia. III. Filosofia e Cultura. São Paulo: Edições Loyola, 1997, pp. 153-173).
[13] Sobre esta e outras teoria sobre os valores e sua objectividade/subjectividade, cf. OGIEN, Ruwen – Le realisme moral. Col.: “Philosophie Morale”. Paris: P.U.F., 1999.
[14] VALADIER, Paul – A anarquia dos valores. Será o relativismo fatal? P. 13.
[15] VALADIER, Paul – A anarquia dos valores. Será o relativismo fatal? P. 13.
[16] RENAUD, Michel – «Os valores num mundo em mutação», p. 306. No 6º Capítulo do livro Ética de la razón cordial (Oviedo: Ediciones Nobel, 2007, pp. 129-155) Adela cortila apresenta uma reflexão muito estimulante sobre esta problemática dos valores.
[17] RENAUD, Michel – «Os valores num mundo em mutação», p. 306.
[18] Para um maior desenvolvimento destas ideias cf. BRITO, José Henrique Silveira de – «Antropologia versus ontologia. A saída de Ítaca». Brotéria – cultura e informação. 139(1994), pp. 7-27.
[19] Leia-se por exemplo ARISTÓTELES, Ética a Nicómaco, livro I, II. Cf. Também ARISTÓTELES – Política. Edição bilingue. Lisboa: Vega, 1998.
[20] Cf. CORTINA, Adela – Ética mínima. Introducción a la filosofia prática. 4ª ed. Prol. de José Luis L. Aranguren. Madrid: Editorial Tecnos, (1986) 1994, p. 266-268 e BRITO, José Henrique Silveira de – «A ética e a autonomia da pessoa». NUNES, Rui; RICOU, Miguel; NUNES, Cristina – Dependências Individuais e Valores Sociais. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 2004, pp. 50-51
[21] VAZ, Henrique C. Lima – Escritos de Filosofia. II Ética e cultura. São Paulo: Edições Loyola, 1988, pp. 110-118.
[22] VAZ, Henrique C. Lima – Escritos de Filosofia. II Ética e cultura. São Paulo: Edições Loyola, 1988, pp. 110-118.